Igor Peres
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Resumo. Este artigo analisa a relação entre a crise da globalização, o fim de um ciclo político e os novos ativismos a partir do caso argentino. Argumenta-se que a internacionalização dos efeitos da crise de 2008 malogrou a tentativa do governo argentino de Cristina Fernández de Kirchner (2012-2015) de implementar seu novo modelo de desenvolvimento, abrindo assim caminho ao triunfo de uma aliança de centro-direita no país. O artigo descreve como, mesmo em um contexto adverso, surge na Argentina um novo tipo de ativismo capitaneado pelo movimento Ni Una Menos, e aborda a sua utilização por parte do repertório grevista, enfatizando elementos inovadores na apropriação dessa ferramenta classista de luta. Finalmente, aponta possibilidades e limites do movimento, sugerindo questões para futuras pesquisas.
Palavras-chave: Crise da globalização, Argentina, Ni Una Menos, Novos ativismos.
Crisis of globalization, end of political cycle and new activism in Argentina
Abstract. This article analyzes the relationship between the globalization crisis, the end of the political cycle and new activisms in Argentina. It argues that the internationalization of the effects of the 2008 crisis failed the attempt by the Argentine government of Cristina Fernández de Kirchner (2012-2015) to implement its new development model, thus paving the way for the triumph of a center-right alliance in the country. The article describes how, even in an adverse context, feminist activism emerged in Argentina, led by the Ni Una Menos movement, and discusses its use of the strike repertoire, emphasizing innovative elements in the appropriation of this classist tool of struggle. Finally, it points out the possibilities and limits of the movement, suggesting questions for future research.
Keywords: Crisis of globalization, Argentina, Ni Una Menos, New Activisms.
No início dos anos 2000, a América Latina presenciou a consolidação de governos que reivindicavam a superação do neoliberalismo. Em uma sequência histórica que começa na Venezuela em 1998, o subcontinente apareceu repentinamente aos olhos do mundo como um oásis diante da desertificação neoliberal. Como insistiram muitos trabalhos, desde o início do presente século, as administrações identificadas com a “maré rosa” se beneficiaram de um contexto favorável em termos de comércio internacional (Barbosa dos Santos, 2019). Nesse cenário, a demanda chinesa por commodities e a abundante liquidez internacional puderam ser dirigidas, por exemplo, à implementação de políticas públicas financiadas por meio da taxação de exportações de produtos primários (Gallagher, 2016). Como resultado, entre 2003 e 2013, enquanto o produto interno bruto (PBI) per capita da América Latina e do Caribe cresceu 31%, a taxa de pobreza descendeu de 32% para 17%, e a desigualdade medida pelo Índice de Gini caiu significativamente (Loureiro, 2018).
O cenário começa a mudar no fim da primeira década dos anos 2000. Após a crise de 2008, a desarticulação da estrutura internacional de comércio composta por países deficitários, exportadores de manufaturas e exportadores de matérias-primas, tornaram explícitas algumas dificuldades das agendas locais de desenvolvimento. O interregno no qual se submergiu o capitalismo desde então contribuiu para o refluxo da maré rosa. Em um contexto global de crise do “capitalismo democrático” e multiplicação de alternativas políticas regressivas (Streeck, 2016), as forças de direita encontraram um solo propício para semear sua ofensiva também nas Américas. Realmente, a queda de Manuel Zelaya, presidente de Honduras, em 2009, pressagiou uma mudança na cena política regional. Depois disso, uma combinação de reveses políticos e desestabilizações ocorreu, com um intervalo de poucos anos, em diversos países latino-americanos. Nesse sentido, pode-se mencionar a perda da maioria parlamentar pelo chavismo na Venezuela desde 2014 e a derrota de Evo Morales no referendo que buscava validar sua postulação à reeleição em 2016. No que concerne às desestabilizações, os casos mais eloquentes foram, sem dúvidas, o do Paraguai, em 2012; o do Brasil, em 2016; e o da Bolívia, em 2019.
Tudo somado, dita transformação na cena política regional levou alguns analistas a caracterizarem essa sequência de giros à direita, como o “fim do ciclo” progressista (Svampa, 2017). A despeito de peculiaridades internas, a tendência esboçada pela sucessão de guinadas políticas atraiu a atenção de pesquisadores que buscaram compreendê-la como um signo dos novos tempos. Enquanto isso, as vitórias eleitorais de Mauricio Macri, em 2015, e de Jair Bolsonaro, em 2018, vieram consolidar a ideia de que a maré rosa havia encontrado seu término.
Este artigo analisa a relação entre a crise da globalização, o fim de ciclo político e os novos ativismos, a partir do caso argentino. Após uma seção de abertura em que se descreve a derrota do governo de Cristina Fernández de Kirchner e a ascensão da aliança Cambiemos de centro-direita à presidência, reconstruímos a trajetória política de uma forma de ativismo que cobrou protagonismo no país nos últimos anos, a saber, o movimento feminista Ni Una Menos. Demonstra-se como esse movimento, em resposta à vitória de um governo de signo neoliberal, constituiu-se combinando distintos repertórios de luta. Se em um primeiro momento suas mobilizações surgem como uma reivindicação intimamente vinculada à luta contra o feminicídio e valem-se de repertórios majoritariamente artísticos e performáticos, paulatinamente essa demanda central passa a articular-se tanto a outras pautas quanto a outros repertórios mais tradicionais como a greve. No entanto, como argumentaremos, é possível caracterizar essa articulação como uma ressignificação do repertório grevista, já que tanto a construção da primeira paralização de 2016 quanto as sucessivas greves que se realizaram nos anos seguintes, inclusive com alcance internacional, incluíram discussões e reinterpretações acerca do significado desse tipo de repertório de ação coletiva. Nesse sentido, acredita-se que o caso argentino não deveria ser lido como uma ocorrência isolada em termos organizativos, mas como uma expressão singular de certa tendência, mesmo que incipiente e frágil, em nível internacional. Afinal, como argumentaram Arruza et al. (2019), as mobilizações feministas posteriores à crise de 2008 lograram em muitos casos lançar mão da criatividade e da imaginação política para enfrentar o recrudescimento do neoliberalismo autoritário pelo mundo. Finalmente, o artigo aponta possibilidades e limites do movimento, sugerindo questões para futuras pesquisas.
Como argumentaram analistas que se debruçaram sobre os resultados políticos da turbulência econômica que fechou a primeira década dos anos 2000, a crise sacudiu parte significativa do globo (Tooze, 2018). Quer fosse em termos de manifestações sociais quer fosse no âmbito institucional, a posta em xeque do epicentro do sistema financeiro internacional produziu ecos os mais distintos, vocalizando anseios que iam de críticas aos resultados deletérios das políticas de austeridade ao rechaço pleno do sistema político
No que concerne às manifestações sociais, indo do Norte da África e ao Golfo Pérsico, como no caso da Primavera Árabe, ao Sul da Europa, com os Indignados, e cruzando o Atlântico Norte até aterrizar nos Estados Unidos com o movimento Ocuppy Wall Street, para mencionarmos apenas alguns exemplos, protestos sociais se acumularam, vocalizando um mal-estar generalizado de difícil esquematização. Lidas ora como espasmos desarticulados, ora como germes de outro tempo político por vir, e, até mesmo como instrumentos de “guerras hibridas”, ditas demonstrações de descontentamento desafiaram o status quo e provocaram questionamentos sobre as promessas não entregues da globalização econômica (Gerbaudo, 2017).
Ao mesmo tempo, impactos do cenário de crise puderam ser observados no âmbito institucional. Começando da esquerda para a direita. Podemos e Syriza representaram, respectivamente na Espanha e Grécia, o desenlace progressista da crise no velho continente. Em 2015, o primeiro obteve um importante resultado eleitoral em nível parlamentar ao prometer uma oxigenação da política espanhola marcada por décadas de governos de concertação. Já o segundo, sob a condução de Aléxis Tsípras, lograria capitanear o parlamentarismo grego depois de uma campanha caracterizada por fortes críticas ao plano de estabilização econômica proposto ao pequeno país mediterrâneo pela Troika.
As expressões institucionais à direita tiveram igual ou maior relevância do que as de esquerda, consolidando ofertas políticas claras e articuladas a partir de programas regressivos na cena política global. Aqui podemos pensar, por exemplo, nos casos de Orbán, na Hungria, Salvini, na Itália, Bolsonaro, no Brasil, e Duterte, nas Filipinas, entre outros, como integrantes de uma constelação política expressamente conservadora. Além disso, a vitória de Donald Trump e o triunfo do “Leave” no Reino Unido, ambos em 2016, sinalizaram o forte descontentamento em relação ao ideário de uma ordem internacional baseada na integração. Quer fosse a partir da reivindicação do America First pelo presidente estadunidense como retorno ao isolacionismo em matéria de política externa e da defesa do protecionismo, quer fosse a partir da crítica ao projeto de integração supranacional europeu levado a cabo sobretudo desde Londres, a crise da globalização trazia à tona uma paisagem mundial definitivamente mais crispada e hostil.1
Embora tenha imposto uma redefinição do tabuleiro sociopolítico internacional e produzido certa clivagem ideológica com uma pronunciada inclinação à direita, é preciso considerar que a crise da globalização não impactou os cenários locais de forma equivalente. Na América Latina, por exemplo, e em particular em casos como o Brasil e a Argentina, buscou-se responder ao panorama adverso a partir de iniciativas de aprofundamento das agendas de desenvolvimento que já estavam em curso antes mesmo da debacle financeira internacional (Singer, 2012; Kulfas, 2021). No entanto, à medida que se aprofundava a crise e se disseminavam seus efeitos negativos, as agendas de desenvolvimento locais começavam a dar sinais de esgotamento, pavimentando o caminho para a intensificação de lutas sociais de distinta índole. Afinal, como vem sustentando a teoria crítica contemporânea, a crise da globalização redefiniu as formas de espoliação da terra, do trabalho e do dinheiro, a fim de manter o ciclo de acumulação do capital em um momento de crise estrutural, o que acarretou, entre outros, uma profunda reconfiguração dos meios populares (Federici, 2020; Harvey, 2004). Em simultâneo, observa-se, em nível internacional, uma não menos importante dinâmica de transformação dos padrões de mobilização social. Decerto, como vêm insistindo alguns trabalhos recentes, formas híbridas de articulação política têm ganhado maior protagonismo em relação aos padrões tradicionais de luta vinculados às formas de solidariedade fordista (Nowak, 2021). Nesse sentido, acredita-se que são valiosas algumas indicações metodológicas e conceituais, tais como aquelas plasmadas na noção de “repertórios” de ação coletiva veiculadas por Charles Tilly (2008) para buscar compreender o caráter fronteiriço dos ciclos de mobilização contemporâneos.
À medida que a bonança do primeiro decênio de progressismo latino-americano arrefecia, manifestações de descontentamento ligadas à reconfiguração social em curso pós-crise de 2008 subiam à superfície, pondo em xeque ciclos políticos nacionais. O contexto argentino que passamos a comentar a seguir é um caso exemplar dessa articulação entre as escalas global e local. Não obstante, nesse caso, mesmo em presença de uma mudança de época desafiadora, novos atores políticos entraram em cena, questionando modos de vida caracterizados pela violência e pela precariedade. A seguir, com base em hipóteses mais gerais sobre os aspectos inovadores do movimento feminista pós-crise de 2008 à escala global (Frederic 2018; Arruza et al, 2019), buscamos, a partir de uma elaboração hipotética própria sobre a passagem de um repertório de corte lúdico e performativo à articulação com o repertório grevista, analisar o caso argentino.
Na Argentina, a segunda presidência de Cristina Fernández de Kirchner (2012-2015) se inicia com a promessa de aprofundamento do modelo de desenvolvimento que lhe havia garantido à reeleição no pleito presidencial de 2011. Após o triunfo por uma margem expressiva de votos em relação a seu opositor, a presidenta decide responder aos efeitos da crise que então começavam a alcançar as economias locais com o lançamento de um plano de desenvolvimento superador. Com efeito, em 22 de novembro, poucas semanas após a votação, a mandatária anuncia o início de um “novo estágio de desenvolvimento” concebido como uma etapa de “sintonia fina”. O lançamento, embalado pelos 54% dos votos obtidos no pleito presidencial, era feito diante do alto escalão do empresariado nacional reunido na 17ª Conferência da Unión Industrial Argentina (UIA) (Galasso 2016).
Se a presidência de Néstor Kirchner (2003-2007) havia cumprido a função de “normalização” do país após a crise de 2001, era tempo agora de mudar o horizonte estratégico. O capital político acumulado por Cristina Kirchner por meio da consecução de políticas públicas exitosas como a Asignación Universal por Hijo (AUH), lançada em 2009, deveria ser direcionado, a partir de então, à consolidação do processo de industrialização com justiça social. De fato, a nacionalização de Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), em 2012, controlada outrora pela espanhola Repsol, representou um gesto significativo nesse sentido. Buscava-se, conforme a comunicação oficial do governo à época, tornar competitiva e potencializar a indústria nacional por meio do barateamento dos custos de produção. A iniciativa, aprovada pelo parlamento em maio do mesmo ano, indicava que o poder do governo alcançava também a seara legislativa.
Findo o verão de 2012, as análises de opinião pública adscreviam 64% de aprovação à presidenta, e o dado não era menor. Afinal, a meses da vitória eleitoral, a mandatária subira dez pontos percentuais no nível de aprovação depois de atravessar duas crises em seu primeiro mandato. Em 2008, se havia deflagrado a crise financeira nos Estados Unidos. Em simultâneo, Kirchner havia sido surpreendida por um severo enfrentamento social com setores agroexportadores no mesmo ano. Esse conflito, desatado pela imposição de tributos sobre a exportação de produtos primários aos produtores rurais, suscitou uma importante mobilização de grupos patronais do agronegócio argentino, que se mobilizaram cortando estradas com tratores em busca de um retrocesso do governo.
Estancada a turbulência, Cristina Kirchner principiava seu segundo quatriênio de governo com fôlego renovado e uma considerável dose de apoio popular. Embalada pelo momento alvissareiro, ao participar da VI Cumbre de las Americas, em Cartagena de las Indias, Colômbia, em abril de 2012, a principal liderança do justicialismo argentino se expressaria a favor da consolidação da soberania entre os países da Patria Grande, colocando a Argentina como o exemplo a ser seguido por outros países do subcontinente. O novo estágio de desenvolvimento se transformava em produto de exportação e o kirchnerismo em sua etapa superior parecia haver encontrado finalmente a quadratura do círculo.
Poucos meses depois, protestos contra o governo começam a mostrar-se cada vez mais expressivos e recorrentes; entre setembro e novembro de 2012, manifestações de rua alcançam grandes conglomerados urbanos no país e as demandas dirigem-se sobretudo à alça inflacionária dos últimos anos e ao aumento da violência nas principais cidades argentinas (Gold & Peña, 2018). Ao mesmo tempo, o sistema político, percebido como alienado e corrupto, também passa ao centro da cena. Em 2013, dois anos depois da expressiva vitória de 2011, que preparou as bases políticas para o novo estágio de desenvolvimento, a Frente para la Victoria, coalisão política conduzida pela presidente, sofre um revés que seria decisivo para o futuro do segundo mandato. Sergio Massa, candidato porta-voz de um discurso fortemente antiestatal, derrota Martin Insauralde, adversário respaldado pelo governo por uma diferencia de 12% (Tagina & Varetto, 2013).
Apenas 24 meses após o lançamento do experimento desenvolvimentista argentino, a oferta eleitoral liderada por Cristina Kirchner por ocasião das eleições legislativas era batida na Província de Buenos Aires, principal cordão industrial do país e berço histórico do movimento criado por Juan Domingo Perón nos idos da década de 1940. A mensagem das urnas explicitava o que até então parecia haver permanecido sob o radar dos analistas políticos. Na prática, o resultado adverso foi um presságio do que viria. Em dezembro de 2015, Mauricio Macri, ex-prefeito da cidade de Buenos Aires e ex-presidente do Club Atlético Boca Juniors, derrota o kirchnerismo nas eleições presidenciais (Vommaro, 2019). Propondo a modernização da economia e uma inserção inteligente no mundo isenta de alinhamentos ideológicos, a aliança eleitoral de centro-direita prometia varrer do mapa a gramática política forjada nas décadas anteriores e, em especial, a vinculada à luta pelos direitos humanos.
Cambiemos, a coalizão eleitoral vitoriosa, integrada principalmente pela Propuesta Republicana (PRO), pela Unión Cívica Radical (UCR) e pela Coalición Cívica (CC), conseguira ser o rosto eleitoral do fim do ciclo progressista na Argentina. Em seus quatro anos no poder, a coalização promoverá uma agenda de ajustes econômicos e será marcada pelo retorno do país ao Fundo Monetário Internacional (FMI), a partir da contração de um dos maiores empréstimos concedidos em toda a história de funcionamento desse organismo internacional. É nesse contexto que surgirá o movimento Ni Una Menos que buscará, a partir da crise, articular distintas demandas como forma de resistir à ofensiva conservadora.
O movimento Ni Una Menos surge na Argentina em 2015. Diante do descobrimento do corpo de Daiana García no dia 16 de março desse ano, vítima de feminicídio, um grupo de jornalistas, escritoras, ativistas e artistas convoca a uma maratona de leituras, projeções e performances “contra o feminicídio” em um espaço público da cidade de Buenos Aires. Diante da ausência de estatísticas oficiais sobre esse tipo de crime, o grupo de participantes ali reunidas buscava chamar a atenção para as cifras de violência contra as mulheres que vinham sendo disponibilizadas desde 2008 por fontes alternativas de informação como o Observatorio de Femicidios en Argentina.
O evento, que daria nome ao movimento em homenagem a um trecho de um poema da poetiza mexicana Susana Chávez, “Ni una mujer menos, ni una muerta más...”, marcaria o início de um ciclo de mobilizações que evoluiria em múltiplos sentidos e se valeria de repertórios distintos de ação. Logo após a reunião que contou com uma importante participação, servindo para mobilizar a opinião pública em relação à violência machista, meios de comunicação massivos davam a conhecer outro caso de feminicídio no país. Em meio à comoção geral e na esteira do acúmulo político legado pela convocatória, surge o desabafo da jornalista Marcela Ojeda veiculado pela rede social Twitter: “Atrizes, políticas, artistas, empresárias, referentes sociais, todas as mulheres... Não vamos levantar a voz? Estão nos matando”. Tratava-se de uma reação pública ao feminicídio de Chiara Páez, uma adolescente de 14 anos, assassinada por seu namorado, Manuel Mansilla.
A indignação de Ojeda possuía lastro estatístico. Só em 2014, segundo meios não oficiais de informação, o país havia registrado 225 feminicídios, um a cada 40 horas, e as cifras não davam sinal de decrescimento. O chamado virtual circulou como um rastilho de pólvora, transformando-se na campanha #NiUnaMenos. Por meio da articulação entre um intenso ativismo digital que tomou as redes sociais, reuniões presenciais e assembleias, convocou-se então ao primeiro protesto massivo do Ni Una Menos para o dia 3 de junho de 2015 (Chenou & Cepeda-Másmela, 2019; Bredosian, 2022).
Mais de 250 mil pessoas compareceram ao chamado à Praça do Congresso, em Buenos Aires, consolidando a campanha, mas também o próprio coletivo político como um ator de peso naquela conjuntura. Sem dúvida, o movimento espraiou-se rapidamente pelas principais províncias do país e, desde 2015 em diante, foram registradas mobilizações contra a violência machista em países ao Norte e ao Sul do continente americano, tais como Uruguai, Chile, México, Equador, Peru, Bolívia e Estados Unidos. No continente asiático, também se observaram mobilizações na China, por exemplo, e protestos foram registrados, finalmente, na Itália, Espanha, França, Turquia e Alemanha, entre outros países europeus. Entre as principais demandas do movimento argentino, estavam a implementação efetiva do plano nacional para combater a violência contra as mulheres, contemplada por uma lei de 2009, a garantia das vítimas ao acesso à justiça, e a criação de um registro oficial único para o mapeio da prática desse tipo de crime.
Uma chave para entender como o movimento pôde absorver distintas demandas no decorrer do tempo e traduzi-las em repertórios tão variados quanto a performance política, o ativismo digital e a greve estão em certas linhagens políticas que o precederam. Nesse sentido, vale a pena remeter-nos a um conjunto de referências importantes com as quais Ni Una Menos esteve direta ou indiretamente em diálogo construtivo e que contribuíram para fazer com que esse movimento fosse capaz de imprimir uma dinâmica própria ao ciclo de mobilizações que vai de 2015 até 2018 na Argentina.
Nesse quesito, devemos pensar em duas linhas centrais com ramificações dissimiles que ora aproximando-se ora distanciando-se conferiram ao Ni Una Menos a sua particularidade. A primeira das linhas remete ao ciclo de mobilizações de corte plebeu que ganha força depois de 1989 com a hiperinflação do governo radical de Raúl Alfonsín e que só arrefeceria de forma significativa a partir de 2004. A primeira ramificação a integrar essa primeira linhagem política do movimento feminista foi a manifestação dos aposentados, a partir de 1991. Proveniente de um ator social inusitado, seus protestos chegaram a aglutinar milhares de participantes durante toda a década de 1990. Suas formas de protestos iam desde a construção de acampamentos em espaços de franca visibilidade, como aquele levado a cabo na Plaza Lavalle, em frente a um dos principais tribunais da capital, marcha com tochas até o hoje já tradicional panelaço (Svampa & Pereyra, 2004).
A segunda das ramificações foi o aparecimento de Hijos por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio (H.I.J.O.S), em 1995. A agrupação formada por jovens filhos de desaparecidos pela ditadura cívico-militar argentina iniciada em 1976 introduziu como centro de suas intervenções a expressividade e legou às gerações militantes posteriores o método do escracho. Valendo-se da palavra de ordem “se não há justiça, haverá escracho”, o grupo buscava tornar visíveis para toda a sociedade a impunidade então vigente em relação aos criminosos de lesa humanidade em liberdade no país. A terceira e última delas foi a experiência dos cortes de estradas iniciadas em 1996 em localidades vinculadas à produção de petróleo ao Norte e ao Sul argentinos. Tanto no primeiro caso, com epicentro na província de Salta, quanto no segundo, na província de Neuquén, trabalhadores e trabalhadoras desempregadas construíram o piquete como ferramenta de luta diante da desintegração de suas fontes de renda com o fechamento de seus locais de trabalho pelo governo neoliberal do peronista Carlos Saúl Menem. O ímpeto organizativo desses trabalhadores inspiraria muitos outros desempregados que, em todo o território nacional, passariam a utilizar seus métodos de luta até os dias de hoje (Pacheco, 2010).
A segunda das linhas centrais que influenciaram o movimento feminista contemporâneo é formada por expressões políticas cujo eixo são pautas identitárias, e contam com forte participação feminina. Nesse particular, podemos aludir a pelo menos três ramificações. Em primeiro lugar, é preciso mencionar o Encontro Nacional de Mulheres, congregação realizada anualmente há mais de três décadas, e que funciona como um espaço de discussão e deliberação da militância feminista. Em segundo lugar, são referências ineludíveis para a compreensão do Ni Una Menos as organizações de direitos humanos como as Madres y Abuelas de la Plaza de Mayo que reivindicam o direito à memória e à justiça pelas vítimas da última ditadura militar argentina (1976-1983) (Gorini, 2006). Finalmente, mas não menos importante, a luta histórica levada a cabo desde os anos 1970 pelo movimento de dissidências sexuais em suas distintas expressões.
Cada uma dessas grandes linhas e suas respectivas ramificações forneceram elementos para a composição da linguagem política por meio da qual se expressaria Ni Una Menos desde a sua primeira atividade massiva realizada em 2015. Quer seja pela heterogeneidade das demandas, pela transversalidade das reivindicações, ou ainda pela inventividade de seus repertórios de luta, todo esse histórico de insurgências sociais e modalidades de organização, tanto em seu caráter plebeu quanto identitário, deve ser levado em consideração quando se trata de entender o feminismo contemporâneo de uma forma histórica e situada.
Na seção seguinte, será analisado de que maneira, aliando criatividade e vocação de ocupação do espaço público, o movimento Ni Una Menos apropriou-se do repertório grevista a partir de 2016. De fato, com a vitória de Mauricio Macri no pleito presidencial de 2015 e a adoção de um programa de ajustes que culminou com o retorno do país ao rol de devedores do FMI, se assistiu a uma reorientação das pautas do movimento. Sem perder relevância e peso em termos de demanda, a luta contra a violência machista passou a ser concebida em aliança com outras lutas, parindo um inovador mecanismo de construção política que teve no repertório grevista um de seus pontos de ancoragem.
A construção da paralisação do dia 19 de outubro de 2016 foi o resultado de um processo imediatamente prévio de acumulação política que vale a pena reconstruir. Em primeiro lugar, é preciso fazer referência a dois eventos significativos ocorridos em 2015: a já comentada primeira mobilização do Ni Una Menos, que se seguiu à jornada de leitura e performances, que fundou o movimento após a morte de Chiara Páez, e o Encontro Nacional de Mulheres, ocorrido na cidade de Mar del Plata (Draper, 2018)
Enquanto a relevância do primeiro deles é evidente, já que se tratou de ato fundacional do movimento, a importância do segundo deve ser analisada à luz da reação que acarretou, deixando claro que haveria contraofensivas ao ciclo de mobilizações que se abria no país. O encontro, que comemorava 30 anos de existência desde sua primeira edição em 1986, aglutinou aproximadamente 65 mil participantes reunidas em torno do lema “o encontro somos nós todas”. Como insistiram algumas analistas, o Encontro Nacional de Mulheres é fundamental para entender ambos, forma e conteúdo, do movimento Ni Una Menos. Como recorda Tarducci (2017), por exemplo, esses encontros começaram em Buenos Aires, no ano de 1986, por iniciativa de participantes da Conferência Internacional da Mulher, realizada em Nairobi, e promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1985, e como prolongação do 3° Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe, ocorrido no mesmo ano em Bertioga, no Brasil.
Desde o princípio, os encontros traziam como traço fundamental ao menos dois elementos que se fariam notar na forma de atuar do Ni Una Menos décadas depois. Em primeiro lugar, devemos destacar o caráter horizontal de suas atividades, plasmado, de fato, na preferência pelo termo “encontro” ao invés de “congresso”. Nesses encontros, o principal, segundo argumentaram pesquisadoras que buscaram reconstruir o evento político em perspectiva histórica, era construir um marco de educação política igualitária centrado na troca de experiências entre múltiplas gerações de mulheres militantes (Lenguita, 2020). Em segundo lugar, os encontros estabeleceram, como elemento característico e complementar ao conjunto de atividades realizadas a cada ano em seu âmbito, a ocupação do espaço público por meio de intervenções lúdicas e “performances callejeras”, entre as quais merece destaque a marcha de encerramento de cada encontro.
Ao fim do evento político realizado entre os dias 10 e 12 de outubro de 2015, manifestantes foram duramente reprimidas ao protestar em frente à catedral de Mar del Plata em um ato que reivindicava o direito a seus corpos e tecia uma crítica aberta ao conservadorismo eclesiástico, e em especial à sua posição sobre a descriminalização do aborto – No mesmo mês de outubro, nove feminicídios foram registrados e se soube do assassinato de Amancay Diana Sacayán, militante trans engajada em lutas como a reivindicação por quotas para personas trans em locais de trabalho.
O ano de 2016 ratificaria a contraofensiva. No mesmo mês de outubro, se soube do feminicídio de Lucía Perez, assassinada com métodos brutais na mesma cidade onde se havia realizado o trigésimo encontro no ano anterior. Um padrão parecia estabelecer-se: quanto mais a organização feminista avançava, mais furibunda se mostrava a reação. Valendo-se de um intenso ativismo digital, como seria praxe para o movimento desde sua fundação, a indignação espalhou-se rapidamente nas redes sociais, repercutindo o ato violento e tecendo conexões entre o caráter inovador e massivo da mobilização dos últimos anos e o dado paradoxal da crescente violência que lhe seguia. Como surge das crônicas do período, porém, a indignação virtual deu lugar rapidamente a uma convocatória presencial no espaço de uma assembleia. O lamento das redes se transformava em um espaço de construção política com definições importantes para o que seria o movimento dali em diante.
A passagem da virtualidade aos corpos em presença se dava no marco de uma grande novidade: a aliança forjada entre o Ni Una Menos e os setores classistas. Depois de seu nascimento em uma jornada de leituras e performances convocadas por jornalistas, artistas e escritoras, de um intenso ativismo digital e da utilização de espaços de debate e deliberação já consolidados como o Encontro Nacional de Mujeres, como enfatizado anteriormente, a assembleia em resposta ao feminicídio de Lucía Perez é realizada na sede da Confederación de Trabajadores de la Economía Popular (CTEP). Criada em 2011, a CTEP foi se constituindo no decurso dos anos na principal organização dos trabalhadores e trabalhadoras da economia popular, na Argentina, consolidando-se como uma opção combativa aos setores mais inclinados à negociação como a Confederación General del Trabajo (CGT). Com efeito, como observaram estudiosos do período, o movimento sindical argentino passava por uma etapa de relativa fragmentação e, ante o giro à direita, era cobrada da principal organização sindical do país uma resposta ao que se considerava a promoção de uma agenda antissocial. Ao mesmo tempo, em oposição à trégua temporária concedida pela CGT ao governo de turno, setores do sindicalismo de esquerda e do movimento de trabalhadores de economia popular pressionavam a coalizão governante para impedir a continuidade da deterioração das condições de vida (Ghigliani, 2020; Marticorena & D’Urso, 2018). É levando em consideração essa correlação de forças que se tece a aliança entre o movimento Ni Una Menos e os trabalhadores da economia popular.
Como sustentam análises sobre o processo construção dessa aliança:
A CTEP já era nesse momento o novo ator social mais importante do país, com uma base de feminidades claramente majoritária e de inserção popular. Estava claro que a paralização se inscrevia no popular e que nossa intenção era construir uma medida com esses setores e não com as burocracias (Latfem, 2018).
O Ni Una Menos se abria assim expressamente ao mundo sindical, e essa abertura tinha uma tripla dimensão. Em primeiro lugar, buscava-se inscrever o movimento no campo popular, ampliando sua base de sustentação e tornando-o capaz de vocalizar as demandas desses setores mais precarizados que, em sua maioria, são compostos por uma base feminina. Em segundo lugar, a aliança com a CTEP era estratégica para a resistência à ofensiva de centro-direita representada pelo governo de Cambiemos; em particular, significava uma contraposição com arraigo popular e classista à CGT, então próxima ao governo de turno. Finalmente, a aproximação entre o Ni Una Menos e a CTEP abria espaço para a utilização de repertórios mobilizados em geral pelos meios sindicais propriamente ditos e que eram considerados estranhos ao arsenal tático do movimento feminista argentino até então, visto por muitos como uma expressão política meramente cultural.
A bem da verdade, como salientaram pesquisas recentes, a participação feminina no universo sindical não deve ser vista como uma invenção do Ni Una Menos, e tampouco um resultado direto da notoriedade angariada pelos movimentos feministas em suas expressões mais contemporâneas. Por certo, como argumentaram Natalucci et al. (2019), por exemplo, é possível notar, paralelamente à ascensão da assim chamada “onda feminista”, a conformação nos últimos anos de importantes espaços de atuação de mulheres dentro de organizações sindicais, incluída a própria CGT, como é caso, em particular, do coletivo Mujeres Sindicalistas (CFT-CGT). De acordo com as autoras, essa agrupação vem tentando problematizar conceitos e práticas sedimentadas há muito no seio sindical desde um ponto de vista feminista e interseccional.
A assembleia na sede da organização dos trabalhadores e trabalhadoras da economia popular foi convocada para o dia 13 de outubro. Com efeito, a ideia de uma paralização feminista já pairava no ar em razão do recurso a essa ferramenta de luta pelas feministas polonesas dez dias antes contra um plano de criminalização do aborto no país europeu. Estimuladas por essa paralização, o Ni Una Menos convoca a assembleia para a sede da CTEP e põe no centro de sua pauta a construção da paralização na Argentina. Duas ressonâncias do movimento polonês sobre a articulação política argentina devem ser registradas. Em primeiro lugar, e, principalmente, dado os fins do presente texto, deve-se frisar a adoção da ferramenta da paralização pelo movimento feminista argentino (E, naturalmente, a perspectiva transnacional aberta por sua atuação política). Em segundo lugar, como sublinharam pesquisadoras do movimento feminista argentino, ao estabelecer como pauta a descriminalização do aborto, o movimento europeu habilitava uma sintonia com as feministas argentinas que havia décadas vinham defendo uma agenda similar. Com efeito, grande parcela do apelo do movimento feminista argentino contemporâneo deve-se à capacidade de construção e massificação da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito, sobretudo a partir de 2018 (Varela, 2020).
A reunião na CTEP contou a participação de cerca de 300 pessoas distribuídas entre integrantes de uma meia centena de organizações e autoconvocadas. Se comparada às convocatórias que se seguiram ao evento de 2015, a assistência à assembleia ganhava agora contornos nitidamente proletários, o que pode ser explicado por dois motivos correlatos. Por um lado, desde a assunção de Mauricio Macri, a militância política nutria uma profunda indignação pelo silêncio da principal central sindical do país, a CGT, diante de medidas de ajuste que vinham sendo implementadas, e pela inércia ante a deterioração das condições de vida advindas de uma inflação interanual que à época chegava a 40% (Gago, 2021). Por outro, se verificava que a alusão à discussão sobre a utilização da paralização como ferramenta de luta havia somado às fileiras do movimento setores que até então não se sentiam inteiramente interpelados quer seja por suas pautas quer seja por suas modalidades de organização.
No horário estipulado para a realização da assembleia, além de grupos de autoconvocadas, mulheres e dissidências sexuais, em sua maioria, organizadas em agrupações com arraigo sindical, tais como o Movimiento Evita, Frente Darío Santillán, CTA Autónoma, ATE, UTE, Izquierda Unida, CTEP, entre outros, começam a chegar à sede do bairro portenho de Constitución. Aparecem então as primeiras elaborações sobre os nexos que unem a mobilização das mulheres em franco ascenso no país e o repertório grevista. Indaga-se, em assembleia, se é possível convocar uma paralização sem o apoio da principal central sindical argentina. Pergunta-se se o que define a força da mobilização deve-se à instituição sindical ou à imprescindibilidade da atividade que realizam em seu cotidiano de trabalho. Discute-se sobre a força que detém para parar o país. Muitas mulheres se questionam sobre o apoio da cúpula de suas organizações à medida de força, dada a sua composição majoritariamente masculina. Finalmente, o desejo das bases se impõe e se desenvolvem assembleias para a organização da paralização em locais de trabalho sem autorização prévia das cúpulas. Chama-se então a uma paralização nacional sob o lema #NosotrasParamos.
O panfleto de divulgação da paralização estabelece as seguintes atividades para o dia 19 de outubro, às 13 horas, “barulhaço e cesse de tarefas pagas e de cuidado. Saímos às ruas! Às 17 horas concentração no Obelisco marcha à Plaza de Mayo. Basta de violência machista!” Apesar da discordância de setores afrodescendentes em relação ao uso generalizado da cor negra para expressar o luto na ocasião, acompanhou-se também aqui a tendência lançada pelo movimento polonês dias antes, e publicizado pela imprensa internacional como a “segunda-feira negra”. A repercussão nos meios de comunicação locais, impressos e digitais da “quarta-feira negra” argentina buscou neutralizar a feição classista do movimento que, mesmo sob clima gélido e forte chuva, concorreu massivamente às ruas da capital. A correlação entre a violência feminicida e diversas outras formas de violência como a econômica, bem como a crítica ao retorno do neoliberalismo ao país com o triunfo de Cambiemos, havia sido posta à sombra. Ainda assim, já era tarde demais. O movimento feminista argentino havia incorporado o repertório grevista, dando um salto qualitativo na força e no alcance de suas mobilizações.
Da greve de 2016 em diante, os efeitos da incorporação do repertório grevista só cresceriam. De fato, o êxito do movimento alentou o chamado à Paralização Internacional de Mulheres, Lésbicas, Travestis e Trans, para o dia 8 de março do ano seguinte. Ainda no âmbito internacional, vale lembrar como, à paralização argentina, se seguiram outras por ela influenciadas que buscaram desafiar o giro conservador da política global, tal como os protestos nos Estados Unidos diante da eleição de Donald Trump e o movimento #EleNão, que enfrentou o neoliberalismo autoritário de Jair Bolsonaro, em 2018.
Na frente interna, a segunda paralização, convocada para outubro de 2017, desafiou a cúpula da CGT que permanecia impassível perante o grave contexto econômico argentino. Nesse sentido, pode-se dizer que, ao incorporar o repertório grevista às suas ferramentas de luta, o feminismo argentino passaria a atuar em um duplo sentido. Por um lado, funcionaria como um canal de tradução de demandas das bases que vinham sendo preteridas pela cúpula sindical em nome da “governabilidade” do governo de turno. Por outro, inauguraria um ciclo de protestos contra as reformas antissociais propostas pelo governo de Mauricio Macri na esteira de inciativas regressivas regionais como aquelas encampadas por Michel Temer no Brasil após o golpe parlamentar de 2016. Decerto, em dezembro de 2017, a cidade de Buenos Aires seria o palco de uma jornada histórica de protestos contra a reforma da previdência que, embora tenha sido aprovada, dificilmente pudesse ser desafiada da forma como o foi, sem o ascenso de massas prévio impulsionado pelas mobilizações feministas.
No entanto, gostaríamos de sustentar que o caso argentino pode ajudar-nos a pensar de que maneira a incorporação do repertório grevista pelo feminismo implicou, em simultâneo, um processo de ressignificação. Afinal, durante a sua construção, a greve deixou de ser vista exclusivamente como o ápice do processo de conscientização daquelas e daqueles que vivem do rendimento de seu trabalho. O chamado à greve e à discussão sobre suas formas e sentidos no caso do movimento feminista argentino atuou ao mesmo tempo como prática de rebeldia e elaboração teórica sobre os sentidos do que significa desacatar, rechaçar, deixar de consentir, dizer basta. Pode-se dizer que ele pôs em marcha um processo de autoconscientização e ampliação da perspectiva crítica das e dos que dele faziam parte. Por isso, muitas integrantes do movimento puderam caracterizar o processo grevista como uma paralização “existencial”.
Com efeito, oscilando em um primeiro momento entre o “descobrimento” de um enorme instrumento de contestação e as dúvidas sobre a magnitude da adesão de uma eventual “medida de força” desse tipo, a discussão sobre a utilização do repertório grevista abre um genuíno espaço de problematização política e debate. Afinal, desde as discussões dos anos 1970, promovidas pelas feministas críticas italianas e estadunidenses organizadas em torno da campanha Wages for Housework, a própria definição de trabalho e geração de valor nas sociedades contemporâneas vem sendo objeto de discussões estimulantes (Federici & Austin, 2019). Como estabelecer com certa precisão as fronteiras entre o trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo? Quanto dura em média uma jornada desse tipo de trabalho? Como identificar e medir aspectos à primeira vista intangíveis como a afetividade envolvida em determinadas tarefas de uma jornada de trabalho reprodutivo?
A crônica resumida de fragmentos de uma assembleia em que se discutia o processo grevista que seria levado a cabo em 8 de março de 2018, realizada na villa 21-24, na cidade de Buenos Aires, pode ajudar a exemplificar o ponto anterior2. A maioria das participantes naquela ocasião era de trabalhadoras da economia popular. Grande parte delas trabalha nos refeitórios populares que, naquele momento, cresciam vertiginosamente ao compasso da crise social desatada pelo governo neoliberal de Mauricio Macri. A certa altura, algumas delas pedem a palavra e verbalizam um dilema: desejam cruzar os braços, mas não podem. Não podem, afirmam, porque de seu trabalho depende a alimentação de seus vizinhos. O enunciado explicita o centro do debate sobre a inviabilização de certas atividades feminizadas e demonstra, de uma só vez, a força da construção do processo grevista como protesto e dispositivo de análise. No caso das trabalhadoras dos refeitórios populares em especial, recuar e não participar da greve significava reforçar a situação de invisibilidade de que padecem. Ao contrário, fazê-lo, implicava deixar, à sua própria sorte, vizinhos e vizinhas que delas dependiam para satisfazer suas necessidades mais básicas. Vinha também à tona outra questão da maior importância: o entendimento por parte dessas mulheres de que rebelar-se é, ao fim e ao cabo, um privilégio. Um privilégio do qual apenas uma parcela da classe trabalhadora tradicional pode usufruir. A situação reorienta a discussão da assembleia e obriga o pensamento tático a ir além do trivial, pondo à prova a capacidade de imaginação política. Força-se, assim, o próprio repertório grevista a se ressignificar para dar conta da multiplicidade de atividades presentes no mundo do trabalho atual.
Que fazer? Do impasse surge uma proposta. Umas das participantes sugere que a comida seja entregue crua nos refeitórios para os quais trabalham como forma de mostrar a imprescindibilidade de suas tarefas. Trata-se, para elas, de desnaturalizar os esforços de cada dia, visibilizar as energias dispensadas em cada minuto de labor, fazer com que se reconheça o suor dedicado a cada trabalho executado. Forma também de devolver a processualidade e a história a um mundo repleto de automatismos. A proposta, aclamada e levada adiante, ganha um complemento imagético. No dia da paralização, 8 de março de 2018, foram distribuídos e fixados cartazes com um grafite onde se lia: “8M. Hoy repartimos crudo – Ni Una Menos”. A pauta contra a violência machista se articulava ao repertório grevista ressignificado, e outra eloquente palavra de ordem podia ser lida nas redes sociais: “se nossas vidas não valem nada, produzam sem nós”.
Consideramos que esse fragmento etnográfico sintetiza a ideia de ressignificação do repertório grevista. Afinal, nele podemos observar como a paralização, em vez de atuar como um ponto de culminância do processo de conscientização do movimento, funcionou como espaço de problematização das próprias categorias e práticas que o constituem, tais como valor, trabalho, produção, produtividade, entre outros. Assim, a paralização feminista, tal como concebida por esse grupo de trabalhadoras da economia popular, antes que confirmar uma identidade de classe concebida a priori, soube politizar o seu próprio cotidiano, transformando a impossibilidade de paralisar suas atividades em uma necessidade e, fundamental, traduzindo o repertório grevista para a sua própria realidade.
Conclusão
Neste texto, foram analisadas as relações entre a crise da globalização, o fim de ciclo político e os novos ativismos, a partir do caso argentino. Tratou-se de mostrar como, a partir de um contexto adverso, marcado pelo fim de uma sequência de mais de um decênio de governos progressistas no país e a vitória da centro-direita, novos atores sociais ocuparam a cena pública e construíram um inovador movimento de resistência.
Efetivamente, durante o arco temporal que vai de 2015 a 2018, o Ni Una Menos deu prova de uma notável versatilidade, sendo capaz de incorporar pautas e utilizar distintos repertórios de ação coletiva. Havendo debutado na cena pública a partir da convocação a uma atividade política de corte artístico e performático, o movimento passou já em 2016 a valer-se do repertório grevista, aproximando-se de setores populares até então afastados do movimento e imprimindo novos significados a essa ferramenta de luta tradicional.
Sugeriu-se, nas páginas anteriores, que uma das explicações para essa versatilidade deve ser buscada nas linhagens políticas que influenciaram o movimento e que abarcam tanto as referências dos anos 1970 quanto outras da história mais recente do país, tal como o movimento dos trabalhadores e trabalhadoras desempregadas da virada dos 1990 para anos 2000, por exemplo. No entanto, também sustentamos, a partir do recurso a fragmentos etnográficos sobre o processo de construção da greve de 8 de março de 2018, que a ressignificação do repertório grevista esteve também relacionada à capacidade do Ni Una Menos de utilizar o processo de paralização como um dispositivo espaço-temporal de problematização de categorias em geral naturalizadas, tais como valor, trabalho, produção, produtividade, entre outros.
Assim, a paralização feminista, tal como concebida por esse grupo de trabalhadoras da economia popular mencionado no relato de campo de que lançamos mão, antes que confirmar uma identidade de classe concebida a priori, soube politizar o seu próprio cotidiano, transformando a impossibilidade de paralisar suas atividades em uma necessidade. Nesse sentido, portanto, deve-se destacar a capacidade do movimento para dar visibilidade àqueles trabalhos ou espaços de produção de valor que, em muitos casos, são marginalizados ou simplesmente ignorados por uma concepção mais tradicional do mundo do trabalho. Afinal, em uma conjuntura de crise estrutural do capitalismo no mundo, e de intensas e aceleradas mutações produtivas que se mesclam a perspectivas verdadeiramente regressivas em termos sociais, não é negligenciável o esforço político de mapear e analisar as formas contemporâneas de exploração e de construir ferramentas organizativas para enfrentá-las.
Finalmente, vale a pena indicar algumas pistas de pesquisa sobre o movimento Ni Una Menos que se depreendem do que expusemos no espaço deste artigo. Como mencionamos em nossa discussão sobre a construção da paralização de 2016, a convocação da assembleia no espaço da CTEP foi influenciada por evento similar levado a cabo pelas mulheres polonesas apenas alguns dias antes da convocação do Ni Una Menos. Tecia-se então o esboço de uma conexão internacional que só cresceria nos anos ulteriores. De fato, a teoria crítica da globalização chamou a atenção para a necessidade de se construírem pontes internacionais de solidariedade diante da avançada sobre os direitos de trabalhadores e trabalhadores na cena internacional, retomando o que havia sido o motivo central das campanhas internacionalistas que remontam à própria construção do movimento operário (Silver, 2005). No entanto, estudiosos como Peter Evans (2015) enfatizaram a fragilidade e os desafios que, em geral, os movimentos de trabalhadores e trabalhadoras enfrentam para se consolidarem na arena global e produzirem algum tipo de incidência sobre os cenários locais. Estes são alguns tópicos de pesquisa sobre os quais será importante continuar indagando, a fim de aprofundar as pesquisas sobre o movimento feminista argentino surgido nos últimos anos.
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1 Baseamo-nos aqui no apanhado das ofertas políticas à esquerda frente à crise de 2008 descrito por Watkins (2016) e Tooze (2018).
2 Os parágrafos que se seguem estão amparados no trabalho etnográfico exposto em Gago (2020). Aos fatos narrados pela autora, acrescentamos nossa hipótese particular sobre a passagem de um repertório de corte lúdico e performativo à articulação com o repertório grevista, desenvolvido no decorrer deste artigo.